sábado, 3 de março de 2018

Circo de Gredos - Via Norte Clássica, Variante Este


Por José Serra.

Sábado, 24 de Fevereiro


Circo de Gredos – Pico Almazor (Face Norte e Variante Este)

Saímos às 20h30. Foi a hora possível, outros afazeres e compromissos impunham uma viagem nocturna. A mesma cordada do fim-de-semana anterior, motivados. Eu o Hélder Melo e o Pedro Canto tínhamos apontado um objectivo ambicioso, a Norte Clássica do Almanzor. Via difícil que em boas condições nos apresentaria uma cascata de gelo WI3 e uns passos de misto no último largo em que a dificuldade pode variar em função da existência ou não de gelo e neve. Como em todas as actividades invernais, são muitas vezes essas condições que determinam o carácter das vias e da forma como nelas se progride. Íamos explorar!

Um dos muitos croquis que consultamos durante a nossa fase de pesquisa.

Estimávamos a nossa chegada ao refúgio madrugada dentro e assim foi… Teremos começado o trilho da Laguna Grande de Gredos já perto das 02h00 (hora local). A noite ajudou, sem vento e com um luar inspirador que nos iluminava o caminho e nos deixava admirar a majestade do Circo (de Gredos) com um novo olhar. Movíamos-nos rapidamente, queríamos chegar e recuperar um “par” de horas antes de iniciar a ascensão. Quando atravessávamos a lagoa, já perto de alcançar a margem ouvimos o som cavo e gutural do gelo a estalar e mover-se… a força desmensurada de um gigante a bocejar debaixo dos nossos pés… intenso!

A cruzar a Laguna Grande gelada, momentos antes do susto.

1h40 de caminhada depois chegamos ao Refúgio Elola. Tínhamos as nossas camas à espera. Um bilhete na porta indicava que tínhamos os nossos lugares em confortáveis colchões no chão das camaratas… houve um pequeno problema de comunicação e se o Pedro não tivesse ligado no caminho, os responsáveis do refúgio já não contavam que chegássemos.

Dormir é coisa que faço pouco nestas circunstâncias, ainda assim foi o suficiente para repousar embalado pelos sempre reconfortantes sons de camarata, todo um luxo.


Domingo, 25 de Fevereiro

6h50, levantar, arrumar e esperar que o pequeno-almoço fosse servido às 7h30. Bolacha Maria com manteiga, tostas com doce e café, tudo enquanto íamos ouvindo contar a estória de uns tipos que chegaram às 3h30 da manhã! ”Que não, não pode ser! Sair da plataforma às 2h30? Quem serão? São loucos!”. Guardámos silêncio...

Vista do Refúgio. O sol já batia no cume.

O Circo estava concorrido. O Refúgio lotado e contamos pelo menos 10 tendas montadas junto à lagoa.

Equipar, preparar mochilas e andar. Desde o refúgio já com crampons e arnês retomámos o mesmo ritmo da noite anterior, rápidos e decididos pelo menos até ao momento em que deveríamos ter cortado à direita na Portilla del Crampon… saí disparado para cima atrás de outra cordada que julguei dirigir-se também à base da Via Norte. Afinal não, quando os alcancei informaram que iam pela normal… desci juntando-me ao Hélder e ao Pedro que tiveram o bom senso de não subir tanto e tomámos o nosso rumo.

Na aproximação à subida da Portilla del Crampon, perseguindo a tal cordada de 4 elementos que nos antecedia.

Na base da Via Norte Clássica.




Mesmo ainda não tendo chegado ao cume, as vistas daqui são espectaculares.

Na base da via, enquanto nos preparávamos víamos já o ressalto de gelo que convida à entrada na clássica Norte. Fui à frente, por alguma razão os meus companheiros de cordada parecem confiar em mim… juro que não os percebo! Avanço para a bonita goulotte de verglas (gelo “vidrado”) e sinto alguma desconfiança pela sua superfície polida, reluzente, a pender para o vertical… por um momento faltou-me o ânimo. O crampon da bota direita saltou. Repousei uns instantes na corda enquanto o recolocava… desanimei… Os rapazes incentivavam-me “Vá pá! É para cima! Venga!”. Olhei para cima e… “É já ali! Isto é um passinho! Vieste cá para isto! Tás parvo?!” Subi cravando os piolets bem acima e as pontas dos crampons onde podia, coloquei dois parafusos no gelo à esquerda e um friend na rocha à direita. Muito mais do que era preciso, na verdade, mas...




Seguimos por uma pala de neve com alguma pendente, mas moderada. Monto a primeira reunião usando dois pitons que se encontram numa rocha, no local mais lógico no final deste primeiro lance. O Pedro sobe em seguida sem grandes dificuldades e em estilo. O Hélder seguiu-o escalando rapidamente e com desenvoltura. Saio de novo com o Pedro a dar-me segurança, vou avançado por uma rampa de neve com algumas placas de gelo. E… cometi um erro. Em vez de girar à direita pelo canal encaixado que nos levaria à cascata da via Norte, segui o corredor mais evidente (e fácil) à esquerda. Foi inconsciente, mas talvez tenha sido melhor assim… enquanto ganhávamos altura percebíamos que as condições eram bastante secas, neve mole e pouco gelo não permitiram que as cascatas e ressaltos se formassem. Era rocha exposta, seca... austera.

No 2º lance, já fora da via Norte Clássica, seguimos por uma variante.

Assim acabámos por desembocar na confluência da via Este e do Diedro Esteras e continuámos com tendência à esquerda até ganhar o ombro do Almanzor pela aresta de Este.



O Pedro e o Hélder iam-se revezando nas tarefas de segurança, eu ia trepando à procura da saída e de conseguir finalmente ver o cume. A comunicação era impossível, eles não me ouviam quando lhes pedia corda ou para que subissem depois de montar reunião. Era puxar corda e eles subiam, rápidos e tranquilos. Foi uma sequência de trepadas em blocos rocha seca, protegendo algum passo mais delicado ou exposto. Não foi difícil, mas ali não se arrisca, eu não arrisco… difícil foi alcançar uma brecha de onde ver o cume e dissipar as dúvidas! Até que, “Olha! É já ali! Uff… finalmente!” (e mais algumas interjeições que seguramente poderão imaginar)… Mais uma trepada e um destrepe deselegante (manhoso mesmo!) e lá chegámos ao topo…

Penúltimo lance, já com mais rocha que neve. Estávamos perto, mas ainda não víamos o cume.




Finalmente o cume!

Alguns dizem que são 2591, outros 2592, a proeminência do pico do Almanzor medida em metros, mais metro menos metro era lá que estávamos. Os três, em segurança e pelos nossos meios, felizes. Momento de cume, foto da praxe. Nesta altura já não sorríamos muito, sabíamos que tínhamos que baixar rápido para não sermos apanhados pela noite. Como planeado a ideia era fazer um rapel até à travessia das Canales Obscuras e daí descer pela via normal. Unimos as duas cordas na muito conveniente argola instalada mesmo por baixo do cume e fizemos um rapel de cerca de 50 metros pela encosta sul até à travessia… devo dizer que esta pequena travessia me deu arrepios. É um “passeio à meia encosta” muito exposto, muito! Atenção máxima, e o Hélder lá descobre a melhor passagem para o colo da Portilla del Crampon. Temos pouco tempo, e decidimos fazer um novo rapel para evitar a descida a 50º e poupar o que restava das pernas. Percebemos então que quase não tínhamos comido nem bebido durante todo o dia… partilhamos água e vamos, mais 60 metros de rapel!

Restava a caminhada até ao refúgio e daí até ao carro que esperava na plataforma. Um corvo que nos acompanhava desde os últimos largos antes do cume parecia despedir-se de nós, lembrando-nos que também voámos livres nesse dia.


Já novamente no Refúgio Elola, prontos para regressar à Plataforma

O trilho no sentido da plataforma faz-se sempre mais difícil, as mochilas fazem-se mais pesadas, e é quase comovente observar a lenta procissão do arrastar de botas e semblante de penitente.

Cruzando novamente a Laguna Grande.

Uma montanha fantástica aqui tão perto… Gredos tem tanto para oferecer! Não completámos a Norte Clássica, é verdade mas aprendemos, ganhámos experiência seguramente. Um dia voltaremos a tentar… a montanha tem tanto de inclemente como de paciente. Estará lá, à espera que estejamos prontos e à altura dos nossos próprios desafios… a casa das nossas aventuras continuará a chamar por nós.


Até já.



Resumo:

Refúgio Elola - Base da Via Clássica Norte do Almanzor: 2h
Subida até ao cume do Almanzor: 5h
Descida pela Portilla del Crampon até ao Refúgio: 2h
Refúgio Elola - Plataforma de Gredos: 2h
TOTAL da actividade: 11h
tempos aproximados e com paragens incluídas.

Participantes: Hélder Melo, José Serra e Pedro do Canto.


Dados Técnicos:

Circo de Gredos, Via Norte Clássica, Variante Este, 200m, M3/50º, WI3

Descrição: Variante à via "Norte Clássica" interessante de se realizar quando a cascata do 2º lance não se encontra formada nas devidas condições. Neste caso encontramos um passo de gelo no primeiro lance, de fácil protecção, mas com inclinação na ordem dos 80º. Quando seguimos pela esquerda cruzando a via "Diedro Esteras" e entrando na via "Canal Este", 2º e 3º lances, a progressão fica mais fácil sobre neve a 45º. No 4º lance, seguimos à direita até encontrar passos de rocha mais inclinados, onde montamos reunião. O 5º lance foi talvez o mais exposto, bastante "aéreo", com um destrepe cuidadoso em direção à vertente sul. O último lance é uma trepada por rocha até chegar à base do cume.

Material: Camalots do 0,3 ao 3; entaladores e excêntricos; 2 ou 3 parafusos de gelo.

Croqui adaptado de outro site que consultamos. Os círculos vermelhos são as reuniões que montámos. No nosso caso, apanhámos talvez ainda menos neve, mas as condições não seriam muito diferentes.

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